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sábado, 15 de enero de 2022

2 poemas de Contigo trouxeste de mar um violino de Carlos D'Abreu


 


ASTROpoéticoFENÓMENO

 

O amor sempre nos recompensará,

podendo brindar-nos de milhentas formas,

as mais das vezes imperceptíveis

devido à nossa desatenção

motivada pela obstinação de prosseguir

numa incessante busca de algo,

alguma coisa que se nos pedirem para definir

teremos dificuldade em exprimir.

 

Talvez não saibamos o que buscamos.

Somos impelidos para a frente,

como se para a frente fosse sempre o caminho.

Será o kronos que nos engana,

como se o devir fosse a meta.

Que marco é esse? Onde está a baliza?

E o que estará para além dela

se porventura a chegarmos a alcançar?

Como se a missão fosse viajar sempre ao futuro.

E se pusermos de lado o futuro

e desacreditarmos o passado

e vivermos um presente estático?

Um presente sempre presente?

 

Raríssimas vezes me dei conta da recompensa poética.

Chegou há dias        inesperadamente

em forma cosmopoética.

Talvez recorde essa recompensa

porque quando chegou

estava em companhia de um conhecedor

das leis humanas,

credível testemunha por isso,

que de ballesta apelido herdou:

 

Havíamos deixado o Litoral

onde levara o amigo do Interior da Ibéria a seu pedido,

pessoa que poucas vezes vê a Terra beijada pelo Mar,

vínhamos dum lugar que esse terráqueo

considerou ser o ideal para morrer.

E ao fim do dia regressávamos a uma Meseta central,

pela noite circulando em auto-estrada

– pista-rápida-para-autos-céleres –

uma rodovia sem paragens e muitas portagens,

construída para vencermos distâncias velozmente.

 

Era o vigésimo quinto dia

do sétimo mês do nosso calendário humanizado

e faltaria um quarto de hora para se anunciar outro dia.

A telechamada que fiz a um camarada

adepto dos fenómenos atmosféricos

registou 23h49m,

encontrando-se este amigo, feliz,

a cerca de 80km para NE,

em aldeia de Loisa duriense,

a mais de 700m de altitude

e que não foi capaz sequer de lobrigar

o que lhe descrevia.

 

Entráramos há pouco na A-25 em Mangualde

e estaríamos a meio caminho entre aquela localidade

e Chãs de Tavares – a medieva comarca

de vicentino Teatro – em direcção da Raia.

Ao volante do automóvel dissertava sobre a vida

e o irmão ouvinte corroborava que era jodida.

E como pertenço a tudo o que me rodeia,

seja o que de físico e próximo se me apresenta,

sejam os vestígios em forma de luz,

da luz de corpos que há milhões de anos

se desintegraram – dizem-no os astrónomos –

a curiosidade regista os movimentos

as tensões

as quebras

as explosões

o instável

o estático.

Tudo o que tem forma, ou se disforma.

 

Em observações rápidas,

estáticas são as estrelas.

E as suas imutáveis famílias.

Constelações com registo.

Tudo há-de ter registo,

tudo deve ser catalogado.

Tudo tem de estar ordenado.

Não podemos permitir

que o Universo se desordene.

É nossa obrigação contribuir

para repudiar o caos.

Por isso vemos no céu

o pastor e o cajado e o sete-estrelo.

Logo eu que busco A Ideia de ordem sem pastor.

 

Mas há até entre os astros alguns rebeldes

que solitários vivem,

corpos que têm curiosidade por outros,

xenófobos, os outros,

que os repudiam, aos atrevidos.

Destes, raríssimos conseguem o contacto

e morrem entre nós,

fenecendo já minguados

porque depauperados de tanta peleja.

Depois há corpos errantes,

que afoitamente desejam ser livres

e viajam acometendo o espaço sideral.

Vemo-los passar com a cauda a saudar-nos,

invejando-os pela liberdade a que se arrogam.

 

Mas o que vos quero contar

é que naquela supra-mencionada noite,

a poesia da Natureza me brindou,

pois por mim passou – relembro que tenho

uma credível testemunha porque jurisconsulto –

uma numerosa e alegre família de celestes

e brilhantes corpos.

 

Movia-me nocturnamente

dentro de uma máquina com luzes

que projectavam a pista.

O céu encontrava-se completamente transparente

e por isso nem a luz artificial dos faróis do veículo

impediu que,

no lugar onde os relógios anunciam as onze horas

(ou as vinte e três),

se me apresentasse uma alegre constelação,

para mim nova     estranha      desconhecida.

Pareciam as luzes espaçadas

ao longo de um eléctrico cordão,

cordão distribuído por descomunal arbor natalis,

ou arburetum obscurecido pela noite.

Acendia uma aqui

apagava-se outra ali

acolá o olho algumas me piscavam,

mantendo-se com luz fixa e muito brilhante a maioria.

E uma ou outra em rápidos movimentos

passava tangentes às congéneres.

Ou talvez fosse ilusão minha

e a que parecia mover-se fixa estava

lá longe no horizonte

e o que acontecia era que o grupo estava já,

ou sempre estivera,

em movimento,

como então começara a pressentir.

Afinal todo o conjunto se movia,

ordenadamente é verdade,

mas alterando as geométricas formas da constelação.

E em determinado momento

foram imprimindo mais velocidade à viagem.

Parei na auto-estrada, desde logo um perigoso gesto,

apagando as luzes,

olhando estupefacto e alegre o fenómeno

e comentando-o com o companheiro.

 

Agora corriam já. E aproximavam-se.

Parecia uma regata oceânica vista do fundo.

Ou um rebanho de ovelhas com lã de cor de ovelha

– nada de negras ovelhas – que numa encosta em frente,

pastava em andamento direccionado a trigueiro restolhal.

 

Corriam as minhas badanas alegres e reluzentes

descrevendo a curvatura da abóbada celeste

que a todos envolvia,

sobre o nosso olhar,

da sinistra para a dextra,

cruzando-se com a nossa marcha de poente a oriente.

 

Corriam umas atrás das outras

e despediram-se no horizonte.

 

Porque no dia seguinte

ao contarmos esse poético regalo

a gente com fé no Universo,

nos perguntou pela sua duração,

dez minutos lhe aventámos.

 

Vi!

A menos que o meu cérebro me enganasse

(e o do companheiro também?).

E o que com os olhos percebi,

é o que aqui tento contar-vos,

modestamente,

pois o que visionámos (ou julgamos ter visto)

suplanta a minha capacidade de descrever uma maravilha.

Um deslumbrante assombro,

fascinante sedução,

que a Natureza me ofertou.

 

Um astro-fenómeno

– como desde logo lhe chamei –

raríssimo certamente,

que convosco quero partilhar,

assim              sem estratagemas,

mesmo sem saber se encaixará

                                                        num livro de poemas

 

 

(25/26-VII-2020)

 

“no hay sitio para dios en el universo.”

 

Michael Mayor, Premio Nobel de Física (2019)

 

+++

atrapado em ti

na languidez dos teus desolhares

e surdos ecos das desditadas horas

em que ajudas à parição do luar

essa argêntea luz que emerge

por detrás da desabitada terra

terra que aguarda o bico do nosso arado

para que a fecundemos com as nossas cores

 

aquelas cores com que registámos

numa negra tabuleta o verso encarnado

 

atrapado em ti

estarei até que as saturadas águas

unam as nossas margens

e esse caminho de sal

nos leve ao encontro marcado

 

àquele tempo sem tempo

porque de tempo suspenso

 

que seja por ora intenso

o ínterim dos instantes

 

porque o brevíssimo

pode ser eterno

 

 

“No alto, a utópica Lua vela comigo

E sonha coalhar de branco as sombras do mundo.”

 

(Fernando Namora, Poema da Utopia)

 

 

 Carlos D'Abreu. Contigo trouxeste de mar um violino. Ed. Carava Ibérica, 2021

 

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