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lunes, 12 de mayo de 2025

TROVA E LAMENTO DO SOLDADO NAS TRINCHEIRAS DE LA LYS


Aqui onde nada chega

nem pão nem uma sede de água, ó Portugal tão longe,

só terras ácidas derredor

e sonhos ácidos derredor

e um futuro ácido sobre todas as coisas,

aqui o ano de 1918 amanheceu lento e frio.

Aqui vejo os cadáveres insepultos

e soletro nomes estranhos em língua estranha

Brest, Somme, Ypres, coisas que eu não sei dizer,

ó velha aldeia e montes onde era outro o sol

e era outro o tempo e onde

uma mãe velhinha fiava a roca antiga

e uma avó antiga amassava o pão e dava calor ao antigo forno

e às cinzas que pertiniam.

E na desconsolada noite onde já não moram luas

onde o ar é acre e a morte reina,

aqui sem agasalho, sem um beijo terno

sem uma doçura de maio ou um olhar de noiva,

porém ainda ecoa a voz que te dizia, ó janeiras, ó fado,

ó cantiga saudosa que

agora aqui trauteio

triste, tão triste

de tudo perdido, de tudo pesaroso,

em surdina, perfilado de trevas,

ó da casa, ó gente boa, em murmúrio arrastado,

o deus menino e os reis

nesta janeira que soa, num lamento que pairará para

sempre no descampado,

sobre todos os fantasmas, os dos mortos e os dos vivos,

escutai e ouvireis, lamúria entre o enxofre das horas

a terra esventrada

a cinza decomposta

o futuro quebrado,

vozes de pranto, ó lamentações

de feridos, ó batida de coches de cavalos rua acima

ó meus Reis Magos de nunca mais, ó meu

presépio pequenino

adormecido no musgo das eras!

urina e suor

balbucios, Bassée, os mortos, os mortos,

e essas repetidas histórias de repetidas vidas,

veteranos de Auber e Fromelles a falarem-nos de infernos nunca

[vistos.

E enquanto canto, morremos.

E enquanto canto, esquecemos quem fomos e quem somos.

E enquanto morremos

perguntamos:

Quando voltaremos à nossa casa?

 


Fernando Cabrita. A lingua portuguesa. Ed. Labirinto, 2024



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