Aqui onde nada chega
nem pão nem uma sede de água, ó Portugal tão longe,
só terras ácidas derredor
e sonhos ácidos derredor
e um futuro ácido sobre todas as coisas,
aqui o ano de 1918 amanheceu lento e frio.
Aqui vejo os cadáveres insepultos
e soletro nomes estranhos em língua estranha
Brest, Somme, Ypres, coisas que eu não sei dizer,
ó velha aldeia e montes onde era outro o sol
e era outro o tempo e onde
uma mãe velhinha fiava a roca antiga
e uma avó antiga amassava o pão e dava calor ao antigo forno
e às cinzas que pertiniam.
E na desconsolada noite onde já não moram luas
onde o ar é acre e a morte reina,
aqui sem agasalho, sem um beijo terno
sem uma doçura de maio ou um olhar de noiva,
porém ainda ecoa a voz que te dizia, ó janeiras, ó fado,
ó cantiga saudosa que
agora aqui trauteio
triste, tão triste
de tudo perdido, de tudo pesaroso,
em surdina, perfilado de trevas,
ó da casa, ó gente boa, em murmúrio arrastado,
o deus menino e os reis
nesta janeira que soa, num lamento que pairará para
sempre no descampado,
sobre todos os fantasmas, os dos mortos e os dos vivos,
escutai e ouvireis, lamúria entre o enxofre das horas
a terra esventrada
a cinza decomposta
o futuro quebrado,
vozes de pranto, ó lamentações
de feridos, ó batida de coches de cavalos rua acima
ó meus Reis Magos de nunca mais, ó meu
presépio pequenino
adormecido no musgo das eras!
urina e suor
balbucios, Bassée, os mortos, os mortos,
e essas repetidas histórias de repetidas vidas,
veteranos de Auber e Fromelles a falarem-nos de infernos nunca
[vistos.
E enquanto canto, morremos.
E enquanto canto, esquecemos quem fomos e quem somos.
E enquanto morremos
perguntamos:
Quando voltaremos à nossa casa?
Fernando Cabrita. A lingua portuguesa. Ed. Labirinto, 2024
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