
Para
Alexandre O’Neill
Portugal,
como o dizias, linda vista para o mar, naufrágios
[descontados,
o
ferrugento cão asmático das praias,
o
grilo engaiolado, a grila no lábio,
o
Portugal das sanfonas e malas de cartão,
o
grupo da sueca e dominó, o genuíno velho
e
o pretenso senhor a compor o fato
e
o bailio e o regedor,
Portugal
pequenino com cheirinho a medronho e a cidreira,
ave-maria,
repique de sinos, senhor abade ás três horas,
rapé,
rock, rap, avião castiço, feirinha de maio,
Ribatejo
com cal, cal e cal, rapsódias de cal,
senhor
Brandão chapadas de cal, mestre mole,
cal,
desertores, mestre escola, mestre emigrado, cal e toiros,
aleluias,
madrugadas,
Portugal
doença dos pezinhos, faxina, pexum nos ares,
pinguna,
panfleto, paramiloidose,
droga
amarga que mal chega ao fim da noite, Portugal suave,
português
seringa,
limoeiro
onde crescem os cristais das horas,
bairro
sujo, gravata de corruptos,
filhoses
na banca, dona maria, olha a pobre!, pobrezinha,
[tuberculosa
e
sem dinheiro para que lhe cantem pelas alminhas,
missa
às seis da tarde, jogo ás sete, Rosinhas dos limões,
biscate
e dácámaiscinco,
estádios
iluminados, patobravo á solta, desencabrestado, upa! Upa!,
desvairado,
upa! Upa!, desarvorado, upa e olé!
terra
de dementes ao sol, terra de 200 gramas e gentes mal
[anafadas,
luas
de Janeiro sem Apolos ou bandeiras, sol a pique,
sol
a rodos,
sol
que os farte,
ei-lo
que volta, ei-lo que volta, ei-lo, ei-lo, derriço de mel,
pastelinho
de Tentúgal, tentação de belas vidas ao sol,
sob
o sol, bajo el sol,
tangos
e fandangos a desgarrar milongas,
foguetório
triste nas merencórias serras,
aldeias
tristes a rapar o junco das tardes moles,
vilinhas
tristes a parir tristezas mudas, absurdas
e
cal e cal e cal, muita cal
Minho
verde de cal, Algarve de cal e cal,
Alentejo
de cal ao sol, jerico de cal,
cal e cal a repugnar os olhos da Europa
fria,
continente ingrato,
Excalibur em que morreram as esperanças de
Uter, o Pendragon,
ingrata
sempre de cal, cadáver adiado e premiado, cadáver odiado,
e
cal
e
cal,
país
de boina na mão, miserável, resignado,
salazarzinho
confessado e de hóstia tomada para sempre santo,
Nosso
Senhor Príncipe Perfeito,
terra
reclusa, paraíso ocupado sem ocupação,
pastelaria
de exílios e fadinhos,
facas
na liga, liga na bota, carteira vaga, povo de sacrifícios e
braços
de cera,
povinho
de promessas e pagelas, povete de santinhos e gamelas,
povoréu
de sarrazinas e bentinhos, Muma, Muma, onde
[baixámos!,
povo
domado por gentinha habilidosa, pardais multiculturalistas,
gente
desenvergonhada a embeiçar-se na teta,
povo
de grumetes amainados, poivinho mole, Portugal mole,
pastel
de nata e nada, capa e batina a assustar o futrica,
diploma,
pendão, caldeira, selo com lacre
bom
dia senhor doutor, sua excelência manda,
viva
o senhor presidente, arriba olé senhor ministro,
palmas
para o senhor governador, vá mais um foguete!
soem
os bombardinos e as tubas, lá vamos cantando e rindo,
prontos
à hecatombe, prontinhos, país capataz, manageiro, a
exigir
o seu débito de mortos,
os
seus pobres, o seu débito de pobres,
as
suas viúvas adiadas, o seu débito de viúvas,
as
suas ilhas de casebres adiadas,
as
suas órfãs adiadas, as suas camionetas repuxando
as
veias a caminho de nenhures e de outras gentes, além montanhas,
além
céus, além frios que são de outros lugares,
manageiro
rapando o espinhaço da terra e a alma dos homens
europa
jerico, europa do Portugal dos grilos e carochas,
zé
dos telhados desabados, festança, bombos,
tardes
de sábado frente ao televisor de todas as tristezas e desencantos,
as
parvas que riem sem saber de quê, os parvos que
gorgolejam
coisas insanas, testarudos, mas embolados – como os moinhos, tu o
dizias, -- país que nem as só três sílabas
de
plástico, que era mais barato!, conserva,
país
que fez bifes do manso boi coloquial, e nem comeu!
e
caçou a chumbadas o
ladino
pardal, e já nem percebe quem ladrilhe
os
seus versos com os teus versos maiores, ó Portugal mudo sempre
a
dizer coisas vãs, pestanídeo, amendoado,
desinteligentizado,
liofilizado,
amargo
a fingir de contente,
carregando
decretos e leis e taxas e tabelas e pautas como o jumento triste,
alombando as divindades e os preçários, as promoções,
as
tecnologias, as inovações, o diabo a sete, o gato das botas,
o
falante grilo,
a
tua sempre nunca por demais cantada rechinante sardinha,
o
papagaio de papel, a passarola de Gusmão,
o
ditador seminarista envergonhado mal caído da cadeira,
o
calendário na parede, sim, esse da matrona de grandes tetas e
[pulseiras
de Viana,
e
a lingerie das rendeiras de Viana,
e
os estaleiros de Viana,
e
meu amor havemos de ir a Viana, o emblema na lapela dos
ululantes
de domingo,
os cigarros infumados dos que cospem a esperança nas
esquinas,
o sorriso prenhe dos que sempre
aclamam
quem estiver no mando,
y
se algum pingo llega a ser fixo al domingo,
também
te jogas inteiro, que se há-de fazer!,
ó
Portugal, que já nem sabes se ainda tens Doceiras de Amarante,
ou
se já as proibiu certo decreto europeu aterrado á força
no
teu peito e cravado nele à força por uma legião de
polícias
mal dispostos, polícias herdeiros de manique, que nunca
viram
um barrista de Barcelos,
ou
um toureiro da Golegã, ou uma noz por descascar,
um
carapau alimado que fosse,
um
galo capão que coma restos e cante a cores na tua prateleira,
uma
trupe de galinhas a correr entre ervas livres e desvelos,
baioneta,
La Lis, bandarilha enfeitando o cachaço de
todos e de
[cada
um,
procissão,
tropa fandanga, submarinos amestrados, fotocópias,
canalha
inverosímil, viela e os sapatos
dele
e dela dormiam muito juntinhos debaixo da mesma cama,
rocim
engraxado de tédio, feira cabisbaixa de fastio, país golpeado
[até
ao osso, como tu dizias, até ao osso, país destutanado,
país
que esqueceu Mário Viegas e esqueceu que se esquecera,
cana
rachada, senhora da agonia, Senhora Nagonia, país, país, país,
questão
que nos fizeste ter connosco mesmos,
cerveja
de Luis Pacheco, fome sem entretém, sem piada, sem
pirraça,
sem jornal vespertino, tença de Camões,
[pensão
que Maia nunca recebeu,
país
sempre de plumitivos aparvalhados, país contraloja, e apesar
de
tudo adoro-te, fazes-me falta, quero sempre conhecer-te ainda
[mais,
e
ter mais de ti, e expurgar-te dessa praga de mercadores que já
venderam
o templo a retalho, e penhoraram a língua em que falávamos nós
e os do mundo, hipotecaram os
perdigueiros
marrados e sem narizes, país sem perdizes,
país
mal expurgado,
país
que me fazes chorar se penso em ti, e remorder-me se acaso te ofendo,
meu remordimento, meu canalha sem rancores,
meu
remorso,
e
teu remorso.
Meu
remorso de todos nós, como dizias...
Fernando Cabrita. A lingua portuguesa. Ed. Labirinto, 2024