Os
lagos da ausência
Há na fala um
silêncio perturbador de afectos.
O mapa da ternura
perdeu as coordenadas de todos os caminhos
e as ruas desertas
viajam agora com o voo das aves.
As leis, sei, não são
perenes nem sagradas. Duram apenas a eternidade
do tempo que lhes
cabe. Nada mais. Sagrada é a memória da boca
que enuncia os nomes
e os rostos
de quantos viajando
aqui permaneceram.
Tenho, por isso, nas
mãos o odor inspirado
dos seios de minha
mãe, esmagados sobre a face;
esse cheiro tão doce,
que guardo nos lábios da infância
até ao longínquo
limite do olhar, procurando com ele resgatar a secura
dos lagos da
ausência, onde, solitário, apenas mora o frio.
Deixa as mãos na
areia
Deixa as mãos na
areia. O peso da água sobre teu corpo inerte
não deixará fechar a
porta dos afectos, os segredos, a sede,
os destroços de azul,
os vestígios de voz.
A ausência da fala
abre fendas que guardam pedaços de retratos;
lágrimas saciando o
profundo oceano que invadiu teu olhar.
Há búzios habitando
gargantas de silêncio no fundo das marés
e caminhos que trazem
a deserção do andar.
Contudo sei-te os
dedos ainda, tocando-me os cabelos
quando as névoas
abafavam ruídos na calçada
e as ruas se
ofereciam a todo o abandono.
As cidades sem vida
fazem perder o norte
a quem subitamente se
achou sem astrolábio.
Agora sei-me órfão do
que já não me dizes,
mas guardarei de ti o
que foste perdendo:
os lábios intentando
retornar às palavras,
o sorriso do beijo,
os sentires do sentir.
A neve, o fogo, a
terra
Pela sombra da neve
sei do sol
irrompendo das nuvens
sobre os barcos
atracados ao cais,
requerendo o vento.
Com os lábios na água
ouso (as) viagens
nos trilhos que
desejo e não intento.
Em meus passos apenas
a memória
de quantos grão de
trigo se entregaram
ao insubmisso bico
dos pardais,
para que suas asas se
contentem
em instigar a fúria
em vendavais.
Há na terra que piso
ou que pressinto
restos de uma semente
ausente e gasta.
Vinde vê-la assim:
desnuda, inteira,
e sabereis que a
minhas mãos doou o viço,
com que ultrapassou
muros e fronteiras.
Ardem de impaciência
e de lonjura(s)
as viagens das aves e
dos barcos
que a meu olhar
aportam como o frio.
E no lume que arde em
minhas veias
é que o fogo da neve
se faz rio.
Trago, por isso, a
transgressão dos pássaros na voz
como um súbito
bailado que emerge pelos dedos
para acordar nos
lábios utopias,
pois, é da comunhão
do vento e do silêncio
que reivindico e bebo
a ousadia.
A Rui d'Espiney
A última guerrilha
Nos postigos do olhar
fecundamos o sonho
carregando de
esperança o pólen das palavras,
e tomamos nas mãos a
fúria das marés que reivindicam barcos,
porque nos move ainda
o secreto desígnio
de confiar às aves as
rotas que traçámos
antes da alegria
morar em nossas bocas.
Nunca haverá
meio-termo: será tudo por nada!
Dá-se o sangue de um
verso, ou até mesmo a vida,
se acaso nos faltar o
ar que respiramos,
porque (o)usamos a
pólvora em operações de afecto
e sabemos dizeres que
o carcereiro não sabe confiscar.
“Há sempre corredores
de liberdade,
até nas prisões de
alta segurança”.
Basta estender os
braços à altura das grades,
deixar que o a utopia
venha habitar a cela
para que os muros
tombem ante a força do olhar.
É no cerrar dos
punhos que a liberdade emerge
para florir desnuda
nos lábios das crianças
ou (re)escrever no
quadro de escolas encerradas
a guerrilha de ousar
o derradeiro poema.
1)
Frase de uma entrevista concedida ao Expresso por Rui d'Espiney
Atrai-me o profano
ofício das palavras
Só o profano ofício
das palavras me atrai,
porque cega de luz o
fascino dos dedos
numa súbita fúria de
recolher o fogo,
perceptível apenas na
fundura dos olhos;
escuta as
confidências do musgo nas paredes
e incentiva abismos e
segredos
que os mendigos
resguardam nas navalhas
para salvar, com lâminas
de gelo, os dígitos da fome,
ou prevenir assaltos
e ciladas,
que perduram na pele
a vida toda.
Divino guardião de
ignoradas línguas, sua fala é nas mãos.
É nelas que se escuta
o rumor das cigarras
recolhendo das flores
o pólen de seu canto
É por elas que escuto
o rumor das cigarras
bebendo das flores o
pólen de seu canto.
para riscar
fronteiras no vazio que se eleva acima das escarpas
e descobrir talvez na
lucidez das árvores
-como vento
irrompendo do fundo de meus bolsos-
quantas vozes se
ocultam na solidão dos lagos
com medo dos
silêncios que guardam as falésias.
Tenho por isso a
descrença do que não é tangível,
e um frio que se
demora ainda sobre as têmporas
e me resseca a boca
no limiar da fonte
onde aves e mulheres
vêem carregar seus cântaros de sede
e desprender a ânsia,
quase rio, quase lume,
que se colara ao voo
de seus cabelos.
E se a primavera não
passar de um equívoco,
-absurdo e inútil
como um sopro na boca-,
há na polpa dos dedos
sonhos que nidificam
na fimbria dos
dizeres que precedem o verso;
concedem juventude à
vetustez da(s) pedra(s),
e conferem raízes à
solidez das águas
que demandam açudes
em areias sedentas,
ou ousam intentar
inconsúteis sinais,
decifráveis somente
na costura dos lábios.