documentos de pensamiento radical

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sábado, 5 de febrero de 2022

5 poemas de SUBVERSIVA LITURGIA DAS MAOS de FERNANDO FITAS

 


 

Os lagos da ausência

 

Há na fala um silêncio perturbador de afectos.

O mapa da ternura perdeu as coordenadas de todos os caminhos

e as ruas desertas viajam agora com o voo das aves.

As leis, sei, não são perenes nem sagradas. Duram apenas a eternidade

do tempo que lhes cabe. Nada mais. Sagrada é a memória da boca

que enuncia os nomes e os rostos

de quantos viajando aqui permaneceram.

Tenho, por isso, nas mãos o odor inspirado

dos seios de minha mãe, esmagados sobre a face;

esse cheiro tão doce, que guardo nos lábios da infância

até ao longínquo limite do olhar, procurando com ele resgatar a secura

dos lagos da ausência, onde, solitário, apenas mora o frio.

 

 

 

Deixa as mãos na areia

 

Deixa as mãos na areia. O peso da água sobre teu corpo inerte

não deixará fechar a porta dos afectos, os segredos, a sede,

os destroços de azul, os vestígios de voz.

A ausência da fala abre fendas que guardam pedaços de retratos;

lágrimas saciando o profundo oceano que invadiu teu olhar.

Há búzios habitando gargantas de silêncio no fundo das marés

e caminhos que trazem a deserção do andar.

Contudo sei-te os dedos ainda, tocando-me os cabelos

quando as névoas abafavam ruídos na calçada

e as ruas se ofereciam a todo o abandono.

As cidades sem vida fazem perder o norte

a quem subitamente se achou sem astrolábio.

Agora sei-me órfão do que já não me dizes,

mas guardarei de ti o que foste perdendo:

os lábios intentando retornar às palavras,

o sorriso do beijo, os sentires do sentir.


 

 

A neve, o fogo, a terra

 

Pela sombra da neve sei do sol

irrompendo das nuvens sobre os barcos

atracados ao cais, requerendo o vento.

Com os lábios na água ouso (as) viagens

nos trilhos que desejo e não intento.

Em meus passos apenas a memória

de quantos grão de trigo se entregaram

ao insubmisso bico dos pardais,

para que suas asas se contentem

em instigar a fúria em vendavais.

Há na terra que piso ou que pressinto

restos de uma semente ausente e gasta.

Vinde vê-la assim: desnuda, inteira,

e sabereis que a minhas mãos doou o viço,

com que ultrapassou muros e fronteiras.

Ardem de impaciência e de lonjura(s)

as viagens das aves e dos barcos

que a meu olhar aportam como o frio.

E no lume que arde em minhas veias

é que o fogo da neve se faz rio.

Trago, por isso, a transgressão dos pássaros na voz

como um súbito bailado que emerge pelos dedos

para acordar nos lábios utopias,

pois, é da comunhão do vento e do silêncio

que reivindico e bebo a ousadia.

 

 

A Rui d'Espiney

 

A última guerrilha

 

Nos postigos do olhar fecundamos o sonho

carregando de esperança o pólen das palavras,

e tomamos nas mãos a fúria das marés que reivindicam barcos,

porque nos move ainda o secreto desígnio

de confiar às aves as rotas que traçámos

antes da alegria morar em nossas bocas.

Nunca haverá meio-termo: será tudo por nada!

Dá-se o sangue de um verso, ou até mesmo a vida,

se acaso nos faltar o ar que respiramos,

porque (o)usamos a pólvora em operações de afecto

e sabemos dizeres que o carcereiro não sabe confiscar.

“Há sempre corredores de liberdade,

até nas prisões de alta segurança”[1].

Basta estender os braços à altura das grades,

deixar que o a utopia venha habitar a cela

para que os muros tombem ante a força do olhar.

É no cerrar dos punhos que a liberdade emerge

para florir desnuda nos lábios das crianças

ou (re)escrever no quadro de escolas encerradas

a guerrilha de ousar o derradeiro poema.

 

1) Frase de uma entrevista concedida ao Expresso por Rui d'Espiney

 

 


Atrai-me o profano ofício das palavras

 

Só o profano ofício das palavras me atrai,

porque cega de luz o fascino dos dedos

numa súbita fúria de recolher o fogo,

perceptível apenas na fundura dos olhos;

escuta as confidências do musgo nas paredes

e incentiva abismos e segredos

que os mendigos resguardam nas navalhas

para salvar, com lâminas de gelo, os dígitos da fome,

ou prevenir assaltos e ciladas,

que perduram na pele a vida toda.

Divino guardião de ignoradas línguas, sua fala é nas mãos.

É nelas que se escuta o rumor das cigarras

recolhendo das flores o pólen de seu canto

É por elas que escuto o rumor das cigarras

bebendo das flores o pólen de seu canto.

para riscar fronteiras no vazio que se eleva acima das escarpas

e descobrir talvez na lucidez das árvores

-como vento irrompendo do fundo de meus bolsos-

quantas vozes se ocultam na solidão dos lagos

com medo dos silêncios que guardam as falésias.

Tenho por isso a descrença do que não é tangível,

e um frio que se demora ainda sobre as têmporas

e me resseca a boca no limiar da fonte

 

onde aves e mulheres vêem carregar seus cântaros de sede

e desprender a ânsia, quase rio, quase lume,

que se colara ao voo de seus cabelos.

E se a primavera não passar de um equívoco,

-absurdo e inútil como um sopro na boca-,

há na polpa dos dedos sonhos que nidificam

na fimbria dos dizeres que precedem o verso;

concedem juventude à vetustez da(s) pedra(s),

e conferem raízes à solidez das águas

que demandam açudes em areias sedentas,

ou ousam intentar inconsúteis sinais,

decifráveis somente na costura dos lábios.

 



[1]




Fernando Fitas. Subversiva Liturgia das maos. 2021

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