ASTROpoéticoFENÓMENO
O amor sempre nos
recompensará,
podendo
brindar-nos de milhentas formas,
as mais das vezes
imperceptíveis
devido à nossa
desatenção
motivada pela
obstinação de prosseguir
numa incessante
busca de algo,
alguma coisa que
se nos pedirem para definir
teremos
dificuldade em exprimir.
Talvez não
saibamos o que buscamos.
Somos impelidos
para a frente,
como se para a
frente fosse sempre o caminho.
Será o kronos que
nos engana,
como se o devir
fosse a meta.
Que marco é esse?
Onde está a baliza?
E o que estará
para além dela
se porventura a
chegarmos a alcançar?
Como se a missão
fosse viajar sempre ao futuro.
E se pusermos de
lado o futuro
e desacreditarmos
o passado
e vivermos um
presente estático?
Um presente
sempre presente?
Raríssimas vezes me dei conta da
recompensa poética.
Chegou há
dias inesperadamente
em forma
cosmopoética.
Talvez recorde
essa recompensa
porque quando
chegou
estava em
companhia de um conhecedor
das leis humanas,
credível
testemunha por isso,
que de ballesta
apelido herdou:
Havíamos deixado
o Litoral
onde levara o amigo do Interior da
Ibéria a seu pedido,
pessoa que poucas vezes vê a Terra
beijada pelo Mar,
vínhamos dum
lugar que esse terráqueo
considerou ser o
ideal para morrer.
E ao fim do dia regressávamos a uma
Meseta central,
pela noite
circulando em auto-estrada
–
pista-rápida-para-autos-céleres –
uma rodovia sem
paragens e muitas portagens,
construída para
vencermos distâncias velozmente.
Era o vigésimo
quinto dia
do sétimo mês do
nosso calendário humanizado
e faltaria um quarto de hora para se
anunciar outro dia.
A telechamada que
fiz a um camarada
adepto dos
fenómenos atmosféricos
registou 23h49m,
encontrando-se
este amigo, feliz,
a cerca de 80km
para NE,
em aldeia de Loisa
duriense,
a mais de 700m de
altitude
e que não foi
capaz sequer de lobrigar
o que lhe
descrevia.
Entráramos há
pouco na A-25 em Mangualde
e estaríamos a meio caminho entre
aquela localidade
e Chãs de Tavares
– a medieva comarca
de vicentino
Teatro – em direcção da Raia.
Ao volante do
automóvel dissertava sobre a vida
e o irmão ouvinte
corroborava que era jodida.
E como pertenço a
tudo o que me rodeia,
seja o que de
físico e próximo se me apresenta,
sejam os
vestígios em forma de luz,
da luz de corpos
que há milhões de anos
se desintegraram
– dizem-no os astrónomos –
a curiosidade
regista os movimentos
as tensões
as quebras
as explosões
o instável
o estático.
Tudo o que tem
forma, ou se disforma.
Em observações
rápidas,
estáticas são as
estrelas.
E as suas
imutáveis famílias.
Constelações com
registo.
Tudo há-de ter
registo,
tudo deve ser
catalogado.
Tudo tem de estar
ordenado.
Não podemos
permitir
que o Universo se
desordene.
É nossa obrigação
contribuir
para repudiar o
caos.
Por isso vemos no
céu
o pastor e o
cajado e o sete-estrelo.
Logo eu que busco
A Ideia de ordem sem pastor.
Mas há até entre os
astros alguns rebeldes
que solitários
vivem,
corpos que têm
curiosidade por outros,
xenófobos, os
outros,
que os repudiam,
aos atrevidos.
Destes,
raríssimos conseguem o contacto
e morrem entre
nós,
fenecendo já
minguados
porque
depauperados de tanta peleja.
Depois há corpos
errantes,
que afoitamente
desejam ser livres
e viajam acometendo
o espaço sideral.
Vemo-los passar
com a cauda a saudar-nos,
invejando-os pela
liberdade a que se arrogam.
Mas o que vos
quero contar
é que naquela
supra-mencionada noite,
a poesia da
Natureza me brindou,
pois por mim
passou – relembro que tenho
uma credível
testemunha porque jurisconsulto –
uma numerosa e alegre família de
celestes
e brilhantes corpos.
Movia-me
nocturnamente
dentro de uma
máquina com luzes
que projectavam a
pista.
O céu
encontrava-se completamente transparente
e por isso nem a luz artificial dos
faróis do veículo
impediu que,
no lugar onde os
relógios anunciam as onze horas
(ou as vinte e
três),
se me
apresentasse uma alegre constelação,
para mim
nova estranha desconhecida.
Pareciam as luzes espaçadas
ao longo de um eléctrico cordão,
cordão
distribuído por descomunal arbor natalis,
ou arburetum
obscurecido pela noite.
Acendia uma aqui
apagava-se outra
ali
acolá o olho
algumas me piscavam,
mantendo-se com luz fixa e muito
brilhante a maioria.
E uma ou outra em
rápidos movimentos
passava tangentes
às congéneres.
Ou talvez fosse
ilusão minha
e a que parecia
mover-se fixa estava
lá longe no
horizonte
e o que acontecia
era que o grupo estava já,
ou sempre
estivera,
em movimento,
como então
começara a pressentir.
Afinal todo o
conjunto se movia,
ordenadamente é
verdade,
mas alterando as geométricas formas da
constelação.
E em determinado
momento
foram imprimindo
mais velocidade à viagem.
Parei na auto-estrada, desde logo um
perigoso gesto,
apagando as
luzes,
olhando
estupefacto e alegre o fenómeno
e comentando-o
com o companheiro.
Agora corriam já.
E aproximavam-se.
Parecia uma
regata oceânica vista do fundo.
Ou um rebanho de
ovelhas com lã de cor de ovelha
– nada de negras ovelhas – que numa
encosta em frente,
pastava em
andamento direccionado a trigueiro restolhal.
Corriam as minhas
badanas alegres e reluzentes
descrevendo a curvatura da abóbada
celeste
que a todos envolvia,
sobre o nosso
olhar,
da sinistra para
a dextra,
cruzando-se com a nossa marcha de
poente a oriente.
Corriam umas
atrás das outras
e despediram-se
no horizonte.
Porque no dia
seguinte
ao contarmos esse
poético regalo
a gente com fé no
Universo,
nos perguntou
pela sua duração,
dez minutos lhe
aventámos.
Vi!
A menos que o meu
cérebro me enganasse
(e o do
companheiro também?).
E o que com os
olhos percebi,
é o que aqui
tento contar-vos,
modestamente,
pois o que
visionámos (ou julgamos ter visto)
suplanta a minha capacidade de
descrever uma maravilha.
Um deslumbrante
assombro,
fascinante
sedução,
que a Natureza me
ofertou.
Um astro-fenómeno
– como desde logo
lhe chamei –
raríssimo
certamente,
que convosco
quero partilhar,
assim sem estratagemas,
mesmo sem saber
se encaixará
num livro de poemas
(25/26-VII-2020)
“no hay sitio para dios en el
universo.”
Michael Mayor, Premio Nobel de Física
(2019)
+++
atrapado
em ti
na languidez dos teus desolhares
e surdos ecos das desditadas horas
em que ajudas à parição do luar
essa argêntea luz que emerge
por detrás da desabitada terra
terra que aguarda o bico do nosso arado
para que a fecundemos com as nossas
cores
aquelas cores com que registámos
numa negra tabuleta o verso encarnado
atrapado em ti
estarei até que as saturadas águas
unam as nossas margens
e esse caminho de sal
nos leve ao encontro marcado
àquele tempo sem tempo
porque de tempo suspenso
que seja por ora intenso
o ínterim dos instantes
porque o brevíssimo
pode ser eterno
“No alto, a utópica Lua vela comigo
E sonha coalhar de branco as sombras do mundo.”
(Fernando Namora, Poema
da Utopia)
Carlos D'Abreu. Contigo trouxeste de mar um violino. Ed. Carava Ibérica, 2021