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miércoles, 11 de septiembre de 2019

3 Poemas de “ Escrevo um verso na água” de Fernando Fitas




12ª carta

estou nu como as palavras. 
da casa não restou sequer a mesa
onde cortava o pão, dispunha o vinho,
e me oferecia às estrelas que viriam
iluminar à noite as oliveiras
de que meu pai cuidara havia tempo.

de tudo me despi, nada mais tenho.
ficaram estas mãos onde o silêncio
se veio deitar um dia e nelas permanece
preenchendo o vazio de seu antigo oficio.

não vou já pelo sonho, reconheço. por ventura,
irei apenas com os pássaros
que guardam nas suas migrações itinerantes
o derradeiro encanto de seu voo.

Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água”

Pausa

estão aqui as palavras – me dissestes -,
deixa que os lábios contem das urgentes rasuras
em extensos panfletos que havemos de escrever,
convocando a desoras pássaros e cigarras
a cederem o espólio de seu canto
a sandálias sem uso e sem caminho,
para melhor viverem a sublime forma de estar sós.

confia tuas mãos ao lume que delas se desprende;
acaricia o fruto deixado na nespereira,
entre raízes secas de um tempo que ficara no coração da casa,
para dizer aos pássaros  os rumores e ruídos de quem a habitara
antes de ser apenas a memória dos nomes
de quantos se ausentaram, 
deixando na portada a sombra de seus passos.

ama todas as coisas como se não as visses
e apenas pressentisses     
um espelho circunflexo emitindo sinais,
uma frase sem nexo perdendo-se das sílabas
e um compassado latejar de tempo sobre as pálpebras,
reclamando penhores, ausências e silêncios,
para doar ao pó a cama de um abrigo
disponível e justo aos desígnios do olhar.

sem tempo nem demoras,
ergue-te numa flor de pele iluminada
à beira do inverno;
toca a perenidade sanguínea das pétalas
que aflorar vierem a meus olhos.
serão tuas as dálias que aos dedos emprestaram
a fragrância dos sonhos
e cálidas esperanças de augustas primaveras.

saberemos, então, aonde vai este instante
em que respiro sobre o denso voo das águas
para tomar nos lábios
aquela inevitável pressa de nos dizer-mos nada,
mesmo que o coração não possa mais que o subtil
sopro dessa flor.


Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água”



16ª carta

soubemo-nos em Maio
porque o perfume das tílias do quintal
dizia mais de nós que todas as palavras
e bastaria um fio para que o rio descesse, inelidível,
as grandes avenidas por onde caminhámos,
-vestidos de azul e de miragens -
na margem deslumbrada da manhã,
como se um golpe de vento, escorrendo pelos dedos,
nos ofertasse a mineral inquietude das marés.

nesse instante tecemos
um casulo de mãos
para beber da chuva a precariedade dos relâmpagos,
sossegar quantas sedes os lábios não ousavam confessar,
ou tomar como nossos os caminhos que havia
entre o deslumbramento e a vertigem
com que desocultámos dizeres e horizontes,
sem questionarmos a (in)utilidade das palavras
que a cada nova sílaba soubemos inventar.

Possuidores, então, de um alfabeto novo
ousamos inquirir a vastidão das estepes,
expropriando escarpas, construindo socalcos,
para doar o usufruto às aves
que por remotas sedes vieram reclamar
a urgência de um ramo onde dobar a casa

fôra, assim, nossa, a vocação intemporal das asas,
o festivo sorriso  das crianças,
a efémera flor das buganvílias,
ou a raiz onde germina o fruto da romã.
com eles intentamos decifrar o apelo do tempo,
o murmúrio dos rios no seu leito,
a solidez da pedra no asfalto
e julgamos possível entender
a sucessão das coisas inefáveis,
contudo tão precárias como o riscar de um fósforo
num candeeiro de ventos levantado.

de Atenas nos chegaram as vozes de filósofos
para plantarmos árvores  na ternura sedenta dos caminhos
e doarmos o sal de quanto mar houvesse
à impreterível viagem dos navios.

tudo isso fizemos e entanto
hoje a areia das praias guarda apenas
defuntos e destroços de barcos e abandono
e  nossas mãos retêm,  desoladas,
a vil intemporalidade de um silêncio cobarde
que nos fustiga a pele e dilacera os ossos.


Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água
Fotografía de Carlos Pérez Siquier



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