12ª carta
estou nu como as
palavras.
da casa não restou
sequer a mesa
onde cortava o pão,
dispunha o vinho,
e me oferecia às
estrelas que viriam
iluminar à noite as
oliveiras
de que meu pai
cuidara havia tempo.
de tudo me despi,
nada mais tenho.
ficaram estas mãos
onde o silêncio
se veio deitar um
dia e nelas permanece
preenchendo o vazio
de seu antigo oficio.
não vou já pelo
sonho, reconheço. por ventura,
irei apenas com os
pássaros
que guardam nas suas
migrações itinerantes
o derradeiro encanto
de seu voo.
Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água”
Pausa
estão aqui as palavras – me dissestes -,
deixa que os lábios
contem das urgentes rasuras
em extensos
panfletos que havemos de escrever,
convocando a desoras
pássaros e cigarras
a cederem o espólio
de seu canto
a sandálias sem uso
e sem caminho,
para melhor viverem
a sublime forma de estar sós.
confia tuas mãos ao
lume que delas se desprende;
acaricia o fruto
deixado na nespereira,
entre raízes secas
de um tempo que ficara no coração da casa,
para dizer aos
pássaros os rumores e ruídos de quem a
habitara
antes de ser apenas
a memória dos nomes
de quantos se
ausentaram,
deixando na portada
a sombra de seus passos.
ama todas as coisas
como se não as visses
e apenas
pressentisses
um espelho
circunflexo emitindo sinais,
uma frase sem nexo
perdendo-se das sílabas
e um compassado
latejar de tempo sobre as pálpebras,
reclamando penhores,
ausências e silêncios,
para doar ao pó a
cama de um abrigo
disponível e justo
aos desígnios do olhar.
sem tempo nem
demoras,
ergue-te numa flor
de pele iluminada
à beira do inverno;
toca a perenidade
sanguínea das pétalas
que aflorar vierem a meus olhos.
serão tuas as dálias
que aos dedos emprestaram
a fragrância dos
sonhos
e cálidas esperanças
de augustas primaveras.
saberemos, então,
aonde vai este instante
em que respiro sobre
o denso voo das águas
para tomar nos lábios
aquela inevitável
pressa de nos dizer-mos nada,
mesmo que o coração
não possa mais que o subtil
sopro dessa flor.
Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água”
16ª carta
soubemo-nos em Maio
porque o perfume das tílias do quintal
dizia mais de nós que todas as palavras
e bastaria um fio para que o rio descesse, inelidível,
as grandes avenidas por onde caminhámos,
-vestidos de azul e de miragens -
na margem deslumbrada da manhã,
como se um golpe de vento, escorrendo pelos dedos,
nos ofertasse a mineral inquietude das marés.
nesse instante tecemos
um casulo de mãos
para beber da chuva a precariedade dos relâmpagos,
sossegar quantas sedes os lábios não ousavam confessar,
ou tomar como nossos os caminhos que havia
entre o deslumbramento e a vertigem
com que desocultámos dizeres e horizontes,
sem questionarmos a (in)utilidade das palavras
que a cada nova sílaba soubemos inventar.
Possuidores, então, de um alfabeto novo
ousamos inquirir a vastidão das estepes,
expropriando escarpas, construindo socalcos,
para doar o usufruto às aves
que por remotas sedes vieram reclamar
a urgência de um ramo onde dobar a casa
fôra, assim, nossa, a vocação intemporal das asas,
o festivo sorriso das
crianças,
a efémera flor das buganvílias,
ou a raiz onde germina o fruto da romã.
com eles intentamos decifrar o apelo do tempo,
o murmúrio dos rios no seu leito,
a solidez da pedra no asfalto
e julgamos possível entender
a sucessão das coisas inefáveis,
contudo tão precárias como o riscar de um fósforo
num candeeiro de ventos levantado.
de Atenas nos chegaram as vozes de filósofos
para plantarmos árvores
na ternura sedenta dos caminhos
e doarmos o sal de quanto mar houvesse
à impreterível viagem dos navios.
tudo isso fizemos e entanto
hoje a areia das praias guarda apenas
defuntos e destroços de barcos e abandono
e nossas mãos retêm, desoladas,
a vil intemporalidade de um silêncio cobarde
que nos fustiga a pele e dilacera os ossos.
Fernando Fitas- in “Escrevo um verso na água”
Fotografía de Carlos Pérez Siquier
Fotografía de Carlos Pérez Siquier
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